Como as Taipas se Tornaram Território Criativo
Nas Caldas das Taipas, o tempo não parou — transformou-se. O que em tempos foi ruína, silêncio ou invisibilidade, é hoje palco, comunidade, identidade. A história cultural da vila tem nomes, lugares e vontades. E todos se cruzaram recentemente numa tertúlia onde se falou de passado, futuro e, sobretudo, da energia que move a cultura local.

Banhos Velhos: da ruína à referência cultural
O renascimento dos Banhos Velhos começou em 2010, quando a direção da cooperativa Taipas Turitermas, então liderada por Ricardo Costa, enfrentou uma questão que era ao mesmo tempo prática e simbólica: o que fazer com um edifício degradado, repleto de memória mas sem utilidade?
A resposta surgiu com coragem — e uma visão clara. A aposta numa candidatura a fundos públicos foi bem-sucedida e permitiu reabilitar o espaço. Mas a decisão mais importante veio logo depois: dar-lhe uma nova vida através da cultura.
“Era unânime: o espaço teria de ter uma função cultural.” — José Maia
Para liderar essa transformação, foi escolhido Paulo Dumas — alguém que, além do conhecimento cultural, tinha uma ligação emocional profunda ao espaço. Cresceu ali por perto e conhecia o valor simbólico daquele edifício.
O desafio, no entanto, era imenso. Pedro Conde, que também integrou a equipa inicial, lembra bem os primeiros tempos: “Nem a corrente elétrica suportava um sistema de som básico. Montávamos tudo ao sol.” As dificuldades técnicas foram muitas, mas ainda mais exigente foi conquistar o público.
“As pessoas não associavam o espaço à cultura. Havia resistência. Mas depois de conhecerem, ficavam apaixonadas.” — Pedro Conde
O que começou como uma recuperação arquitetónica tornou-se um ponto de viragem cultural. Os Banhos Velhos deixaram de ser ruína para se afirmarem como símbolo da reinvenção das Taipas — um lugar onde a cultura encontrou casa, mesmo contra todas as probabilidades.
O tempo da resiliência: fazer cultura onde nada estava preparado
Pedro Conde integrou o projeto dos Banhos Velhos a convite de Paulo Dumas. Na altura, o espaço estava longe de ser um local preparado para acolher espetáculos. Não havia infraestrutura básica: nem a corrente elétrica suportava sistemas de som e luz, mesmo os mais simples. Tudo tinha de ser feito do zero — desde a montagem do palco, frequentemente sob o sol escaldante, até à gestão da logística, muitas vezes garantida por equipas mínimas e voluntariosas.
A primeira grande batalha foi técnica. A segunda, talvez mais difícil, era simbólica: convencer as pessoas a visitar os Banhos Velhos. Durante muito tempo, o edifício não evocava cultura, apenas abandono. Por isso, foi necessário romper resistências, criar curiosidade e transformar perceções. Houve experiências com bilhetes, outras sem, e muitas tentativas até se encontrar o equilíbrio entre acesso e valorização. A estratégia era clara: primeiro, dar a conhecer o espaço; depois, deixar que a programação fizesse o resto.
José Gomes viria a juntar-se mais tarde, a convite de José Maia. Para ele, o verdadeiro mérito esteve em quem acreditou, arriscou e construiu — muitas vezes longe dos holofotes. Continuou o trabalho iniciado por Dumas e Conde, consciente de que a continuidade era um dos fatores mais importantes para dar identidade ao projeto. Mas essa estabilidade era difícil de garantir. O desafio de manter um programador durante várias edições era real, e a escassez de meios obrigava a uma dedicação extrema. Produzir um concerto ali podia significar estar no recinto das 07h00 às 04h00 do dia seguinte, a montar palco, cadeiras, equipamento — tudo a cargo de uma pequena equipa polivalente.
“Fazer um concerto nos Banhos Velhos é estar lá das 07h00 da manhã às 04h00 do dia seguinte com uma pessoa que é uma espécie de faz-tudo.” — José Manuel Gomes
Com o tempo, a aposta começou a dar frutos. O público foi crescendo. A comunicação cuidada ajudou a transformar um espaço esquecido numa marca cultural reconhecida. A programação ganhou personalidade, e o projeto começou a aparecer na comunicação social nacional, com destaque para o impacto nas Caldas das Taipas enquanto território cultural emergente.
“Fala-se pouco no marketing cultural. Muitos cartazes não transmitem nada. Os Banhos Velhos conseguiram comunicar com quase nada.” — José Manuel Gomes
Curiosamente, o reconhecimento veio primeiro de fora. Visitantes de Guimarães, Braga, Famalicão e Porto começaram a marcar presença, motivando os próprios locais a redescobrir aquele espaço. Um movimento de fora para dentro que revelou o potencial do projeto e consolidou a sua relevância regional.
Hoje, com um público fiel e uma marca consolidada, os Banhos Velhos são um exemplo de como a persistência, mesmo com meios reduzidos, pode criar impacto. Um caso claro de resiliência cultural, onde a paixão e o compromisso comunitário compensaram a falta de recursos. E talvez seja essa a verdadeira força dos Banhos Velhos: provar que é possível transformar um edifício devoluto num coração pulsante da vida cultural de uma vila.
Criar público, assumir riscos: o equilíbrio delicado da programação cultural
Com o crescimento da notoriedade vêm também os dilemas estratégicos. Como continuar a surpreender sem perder o público já conquistado? Como manter a identidade sem cair na repetição? E, sobretudo, até onde arriscar?
José Maia reconhece que o percurso dos Banhos Velhos é distinto de outros eventos como o São Pedro Não Dorme ou o Rock no Rio Febras, mas o dilema é transversal. “Será que devíamos apostar num nome mais sonante? Mas e se depois o público não aparece? Como o pagamos?” — questiona. A resposta, acredita, passa por três ingredientes simples mas difíceis de sustentar: qualidade, persistência e teimosia.
“Fomos várias vezes questionados sobre o público de fora. Mas era exatamente isso que queríamos. A nossa missão passava por atrair pessoas para conhecer a Vila e dinamizar a economia local.” — José Maia
O caminho nem sempre foi claro. Houve momentos de forte contenção orçamental que exigiram adaptações rápidas. A resposta veio da comunidade: envolveram-se pessoas, partilharam-se responsabilidades e apostou-se na diversidade da programação. Foi essa flexibilidade que permitiu crescer de forma orgânica, sem perder identidade.
Pedro Conde reforça que o orçamento define muito do que é possível fazer, mas não tudo. A criatividade e o gosto pessoal são igualmente determinantes. “Programar para 200 pessoas é uma coisa. Programar para 15.000 exige outro tipo de responsabilidade. Já não se pode fazer tudo só porque se gosta.”
“O público de antigamente era muito fiel. Hoje tudo é mais efémero. Por isso, os eventos precisam de criar um conceito forte — algo que vá além da música.” — Pedro Conde
A envolvência, o ambiente, a narrativa do festival passaram a ser tão importantes como os artistas em cartaz. Mas quando chega o momento de fechar o programa, tudo volta a uma variável inevitável: o orçamento disponível.
Uma nova dinâmica cultural nas Taipas
Os festivais não param de crescer na região. O São Pedro Não Dorme, por exemplo, nasceu da vontade de oferecer algo mais apelativo às gerações mais novas, dentro do espírito das festas tradicionais. DJs, bandas e um nome original — proposto por David Barroso — ajudaram a construir uma nova marca em ascensão.
José Gomes destaca que o território tem algo raro: massa crítica cultural. “Temos uma comunidade que pensa cultura, que se envolve. O Suave Fest começou com 150€, foi fruto de cooperação pura, e hoje vai para a 10.ª edição.” Um feito notável para um festival dedicado a bandas emergentes, muitas vezes ignoradas pelos grandes palcos.
“Logo no segundo ano, com apenas 2.500€, trouxemos 10 bandas. Isso diz muito sobre o espírito com que trabalhamos.” — José Manuel Gomes
Pedro Conde fecha o ciclo recordando o impacto de eventos como o Rock N101, que marcou uma geração. “Isso só aconteceu porque havia público. Público com sede de cultura. E quando isso existe, tudo é possível.”
🟡 Vídeo completo da tertúlia:
Agradecimentos
Este artigo é o reflexo da partilha generosa de ideias e experiências na tertúlia “Como transformar uma festa local num grande festival”, realizada no âmbito do evento Kick-off Movita.
Com a participação de:
-
Pedro Conde
-
José Manuel Gomes
-
José Maia Freitas
Moderação:
-
Horácio Nogueira
-
Augusto Ezequiel Silva
Comunicação Social:
-
Notícias das Taipas
- Reflexo Digital
Organização:
-
Movita — Associação para a Participação e Ação Cívica
Apoios ao evento (ordem alfabética):