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Movita em Reflexo

Os limites da minha linguagem são os limites do meu mundo

By Outubro 16, 2025No Comments

Os limites da minha linguagem são os limites do meu mundo.

Uma comunidade é viva quando é pensante e é pensante quando lê, quando conversa, quando questiona, quando partilha, quando faz da palavra um lugar de abrigo.

Movita em Reflexo: Os limites da minha linguagem são os limites do meu mundo

Dentro de dias iremos votar. A minha filha tem dezanove anos e será a terceira vez que repetiremos esse caminho juntas. Ela regressa à antiga escola primária e eu, a rostos que a memória demora a reenquadrar.

Vamos caladas com o sol a bater na calçada. Ela nunca pergunta em quem voto. Eu também não. Mas vou sempre a matutar numa boa forma de o fazer, sem que pareça que quero dirigir-lhe a mão e sem trair o princípio de liberdade que tanto evoco. Ela não parece sentir a mesma inquietação, conhece bem as minhas vontades, mas eu não conheço bem as dela. Ela é contida, habita o silêncio com naturalidade. Não incomoda ninguém se não for incomodada. Só dá feedback negativo ou mudo – faz lembrar a minha mãe e talvez todas as mães da minha geração: a ternura foi-lhes roubada pela prudência.

É tudo muito rápido. O cumprimento, o papel, a caneta, o traço. E, no entanto, há ali uma cadência, um rumor de narrativa, um início de enredo coletivo. Entre a caneta e o silêncio vejo-me numa narrativa literária. Vejo uma afinidade entre o boletim de voto e a página escrita de um livro, ambos suportes frágeis onde projetamos um desejo de salvação. As eleições, como os livros, são rituais de fé: cada um escolhe uma história na esperança de que ela o salve de outras piores.

“A política e a literatura coexistem desde que o ser humano aprendeu a narrar o mundo. Elas partilham o mesmo território, o das palavras. A diferença é que a política usa as palavras para organizar a sociedade e a literatura para a compreender. Talvez a política construa estradas, mas é a literatura que ensina o caminho. Onde a política oferece certezas, a literatura semeia dúvidas. Uma oculta, a outra revela. Quando a linguagem se degrada, a política transforma-se em propaganda e a literatura torna-se a última defesa da verdade, ela atua onde a política raramente chega: na consciência.”

Quem leu Memorial do Convento lembrará Blimunda, essa personagem de olhar insólito, capaz de ver as vontades escondidas nos corpos humanos. Também a literatura nos dá esse dom: o de ver por dentro. Ela oferece-nos uma competência para ver o mundo de diferentes perspetivas, compreender a causa dessas diferenças, dialogar com elas e aceitá-las como manifestações legítimas da pluralidade humana. Afinal, como diz a canção, “muito mais é o que nos une que aquilo que nos separa”. E é essa lucidez que nos permite responder à vida com humanidade e nos ensina a reconhecer o lugar que nos cabe no mundo.

Mas há um perigo à espreita – quando deixamos de ler, perdemos o olhar. Um povo que lê é um povo que pensa e um povo que pensa é menos enganado. Quando uma mente lê, o mundo abranda e esse hiato é, talvez, o único lugar onde a liberdade ainda se sustenta. Ler é o gesto mais simples e mais subversivo que podemos praticar.

É o princípio da liberdade.

E, no entanto, quase metade da população portuguesa, diz a OCDE, não consegue interpretar corretamente um texto simples. Isso mesmo. Um texto simples. Como uma notícia, uma fatura, uma instrução. Estou certa de que a iliteracia não é um problema educativo é um problema ontológico. Ler é o princípio de tudo – “No princípio era o verbo”- É o princípio da liberdade. A liberdade de pensar com cabeça própria, de fazer escolhas lúcidas, de dizer não à verdade negociável, ao cinismo, à manipulação, aos argumentos de bagatela, às notícias falsas, à propaganda falaciosa. É também o princípio da relação. Porque quem não lê, não reconhece o outro. Não entende o ponto de vista alheio, não tem misericórdia pelo seu semelhante. A literacia é o alicerce da alteridade. Só compreende o outro quem é capaz de se imaginar fora do seu próprio lugar.

“A iliteracia é uma falha civilizacional, e quem não lê não participa, não vota informado, não exige, não fiscaliza, não propõe e não sonha. Cuidado, a ignorância não é nada neutra, é politicamente funcional. Esta dificuldade em ler é também causa e consequência de um tempo cansado, dos dias apressados, saturados de estímulos no fluxo contínuo do imediato. A leitura atenta exige tempo, silêncio, concentração e vontade. E não há silêncio possível num mundo onde tudo grita. O resultado está à vista: desinformação viral, polarização emocional, diminuição do arco de atenção, fugacidade e frivolidade tecnológicas.”

Os movimentos de cultura partilhada podem ajudar. Levar livros onde não há, fazer da leitura um gesto comunitário, ganhar conversa. E é talvez por isso que vos escrevo, porque a comunidade é uma possibilidade de mundo. Mas só o será se os seus habitantes tiverem vontade de participar mais ativamente na vida cívica. Uma comunidade é viva quando é pensante e é pensante quando lê, quando conversa, quando questiona, quando partilha, quando faz da palavra um lugar de abrigo. É urgente regressar ao princípio, às redes analógicas. Para, talvez, como diria Torga, criarmos o mundo à nossa medida.

A literatura não faz política, é certo, mas guarda a sua dimensão humana e lembra-nos que a democracia, como a boa literatura, não se escreve sozinha. Exige leitores atentos, críticos, dispostos a virar a página quando é preciso, mas também a reler quando se esquece o que foi escrito.

Caro leitor, se quiser comentar, sinta-se acolhido. Entrarei no debate se iniciar o seu comentário com um número à sua escolha, essa será a senha que me permitirá dialogar apenas com quem leu o artigo até aqui. Além disso, esse número permitir-lhe-á participar num sorteio cujo prémio é um livro. Caso opte por ofender, por gentileza, faça-o no diminutivo: dói menos.

Isto é apenas uma dinâmica artística que procura reunir o valor intelectual e o valor moral. Se a arte promete aproximação e humanização, será pela arte que caminharemos. Você faz parte do quórum. Parabéns, feliz contemplado.

Eduarda Ribeiro

Artigo originalmente publicado no Reflexo Digital a 09 de outubro de 2025